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Movimento Literário Cadeira 1/2 Fio

por revistaconthato
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O ENCANTO PELA LEITURA.

Advogado, pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito, Schleiden Nunes-Pimenta tem 34 anos nasceu em Campo Belo – MG. Começou a escrever aos 18, quando venceu seu primeiro concurso literário: um 1º lugar em um prêmio de contos promovido pela Universidade Federal da Grande Dourados. Desde então, escreveu mais de trezentos contos, duzentas poesias, uma centena de crônicas e uma dezena de romances, no que somam hoje trinta livros (dentre publicados, e não publicados). Possui obras escritas em todos os gêneros literários, da prosa ao cordel, da não ficção à fantasia, publicadas em todas as regiões do Brasil, em diversas academias de letras, editoras, revistas, coletivos literários, entidades educacionais e da sociedade civil. Dentre alguns dos prêmios mais recentes destacam-se a seleção no Prêmio Mário Quintana, em 2021, no FEMUP, em 2022, e no Yoshio Takemoto, neste ano. Dentre suas obras publicadas solo estão “Um dedo de prosa e um gole de justiça” (Contos/ Ed. Lumen Juris), “A Bruxa de Paris” (Romance/Cartola Ed.), “De volta à Recoleta” (Novela/Caravana Ed.), “Vermelho como Brasa” (Poema/Ed. Folheando) e “ångelo” (Novela/Ed. Toma aí um Poema). Um escrevedor mineiro, vegano, defensor da natureza, dos espíritos que abarcam todo tipo de vida e dos direitos de todos os animais.

O CACHORRO

Falta de avisar não foi. Era o segundo dia seguido que o cachorro do vizinho não parava de latir, de chorar, e nós fizemos o que era mais adequado fazer: ligar para o dono.

Havíamos nos mudado para esta casa recentemente e mal conhecíamos quase nenhum vizinho. Em verdade, não gostávamos desse movimento, de conhecer novas pessoas em tais situações, como se fosse uma obrigação levar um bolo ou um assado para pedir permissão de moradia. Sem isto, parecia que a privacidade era maior. Contudo, quando o cachorro dele passou a madrugada inteira chorando, não tivemos outra escolha senão a de contactá-los.

Prezando por não criar qualquer conflito, procuramos nos expressar da maneira mais conciliatória possível. Conseguimos o número do seu celular com um amigo, que também era policial militar, e entramos em contato com o desconhecido na manhã seguinte.

Não havíamos dormido. As olheiras, ainda agora, existem; as pálpebras pesam, de sono e de incredulidade.

Um muro separa nossas casas. A nossa, comum; a dele, estilo chácara: tem galinheiro, tem canteiro, tem o cercadinho onde o cachorro fica preso – o que já não aprovo. Não aprovo, mas, muito a contragosto, relevo o espaço do cercado se for grande, se o bicho for bem alimentado, se tiver carinho. Embora ainda assim não me agrade. Tolero, mas sem cobertura para protegê-lo em dias de chuva?

A chuva que caiu na noite anterior foi um ponto alegado por Hélio, o vizinho. Disse que ele parecia ter medo de qualquer garoa. Segundo ele, o cachorro, a quem chamava de parceiro, estava mimado. Recentemente, sofrera um acidente, precisou de cuidados, e o dono se viu obrigado a deixar o cercado aberto em vistas de suas novas necessidades. Agora, que já estava curado, o cão voltou para o cercado e estranhou pois havia se acostumado.

— Mal… acostumado… – ele frisou ao telefonema.

Nos esforçamos bastante, ou tentamos, explicar nossa situação. Não é fácil. Antes de contactarmo-lo, vasculhamos suas redes sociais. Parecia um sujeito bom; parecia realmente gostar de animais. A isto fazia coro suas fotos no rio, com o cachorro, com outros bichos, sorrindo e chamando-os de parças. Porém, não é assim. Há amor, imagino, mas ao estilo antigo. Há carinho, mas distanciado. Não é como temos para com os nossos, não é vê-los como filhos. Não é como permitir que tomem chuva e chorem toda a madrugada e não se importe e somente diga “tá mal-acostumado”, rindo. Não é como vê-los só como cães, mas, sim, enquanto seres repletos de consciência e de vida.

Foi um belo, entretanto gaguejado, discurso – ou tentativa de resolução pacífica de conflito. E faço a deixa, a vocês, num tom de voz que não conseguimos deixar para ele: não tenha filho, de que espécie for, se não puder levá-lo à sua cama quando estiver amedrontado; se não puder pô-lo dentro de casa em dias de tempestade; se só oferecer a ele as sobras do almoço de antes de ontem à tarde; se ante o seu choro, que perdura por horas, não sentir nada senão a graça de chamá-lo de mimado ou mal-acostumado.

Todavia, um pouco até que nos acalentamos. Afinal, ele parecia mesmo gostar de bichos – apesar de à moda antiga. Temíamos que o cão tivesse prendido a pata em algum buraco, ou se enforcado, ou se machucado, ou estivesse sem comida. Ao menos soubemos, durante o telefonema, que simplesmente se tratava de um cão mimado.

Disse-nos, o tal do Hélio, em tom de riso: “ah, vocês estão exagerando”, que, qualquer coisa, poderíamos chamá-los pelo interfone mesmo. Que seu pai mal saía de casa, estaria a disposição acaso precisássemos e que, no outro dia, ele chegaria da pescaria para conversarmos. No mais, o cachorro que chorasse até cansar; o cachorro que deixasse o mimo de lado. Em último caso, fora a noite insone e toda a preocupação a que estaríamos fadados, de certo modo foi reconfortante saber que havia mais alguém naquela casa.

No restante da manhã, não houve mais choro, e pudemos enfim dormir, até que ao meio-dia o cachorro voltou a chorar e a latir. Não são descritíveis as notas daquele violino agudo, melancólico, que ele fazia; assim como para aqueles, que cuidam dos animais à moda antiga, não deve ser compreensível como aquela música pune, tortura os ouvidos deste vegetariano que vos conta.

O segundo telefonema foi de enfezar. O amistoso tornou-se final de campeonato. Quando notamos, ameaçávamos o policial aposentado com denúncias na delegacia – em que ele havia se aposentado – e na secretaria de direito ambiental. Apelamos até para os instagram de influencers de proteção animal caso a lei não nos abarcasse.

Contudo, pareceu não se importar em demasia nem quando cogitamos a hipótese de o cachorro morrer. A uma da tarde, seu choro estourava nossos tímpanos. Não suportamos. Saltei o muro, desequilibrado e rolando na terra molhada. Aproximei-me do cercado, e, ao chegar mais perto, o cachorro foi no sentido contrário. Como que se me guiasse, como se quisesse me avisar de algo, latiu com as forças que ainda tinha na direção da porta da cozinha, onde o corpo do pai de Hélio há dois dias estava estirado.

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